sexta-feira, junho 03, 2016

E Viveram Felizes Para Sempre

"E viveram felizes para sempre."
Só que não.

É engraçado. Vivi uma infância embalada pelos mágicos filmes Disney (quem não?), esculpido ponto a ponto, sem que me apercebesse, pelas sábias lições de vida escondidas para lá das bonecadas. Inspirado, na minha inocência de criança, pelas mensagens de esperança de um mundo melhor e de uma vida plena, quantas vezes ao som de "E viveram felizes para sempre". Bem ou mal, isso reflectiu-se em mim, na minha forma de ser e estar na vida e na minha forma de projectar o meu futuro. Até há uma semana.

Neste quarto não há muito que fazer senão cansar-me de ler jornais e de ver os mesmos canais de televisão vezes sem conta. Nem meio vazio, nem meio cheio, apagar a televisão não se revela melhor opção, porque à falta desse ruído de fundo há só a minha respiração esquisita e os apitos intervalados desta maquineta irritante, que se me liga por uma agulha ao pulso. Nem a porra de uma mosca se ouve.

Então, enquanto esperava, optei por falar com os meus botões. Revi todos os cenários possíveis, ansiando pelos melhores e preparando-me para os piores. Sei lá, na altura pareceu-me uma boa ideia. Sempre gostei de ser racional e até hoje a vida não me tinha falhado nesse aspecto: a coisa da vida é que tudo se resume a uma questão de perspectiva. E nos meus breves anos de vida eu já carrego um histórico pesado de termos de comparação, que me faz olhar para tudo num paradigma de simplificação e de aceitação. Separar coisas importantes de coisas irrisórias ou acessórias.

A verdade é que vi partir amigos injustamente, vi partir irmãos e irmãs de amigos cedo demais, alguns deles de formas tão estúpidas quanto o ser humano pode ser estúpido. Onde me situo eu, neste circo de atrocidades, para poder sentir-me infeliz ou injustiçado com aquilo que tenho ou aquilo que me falta? Ao lado daqueles, que são problemas dignos desse nome, os meus eram anedotas. E daquelas más.

E assim relativizei a questão e ensaiei os cenários na minha cabeça. Embora fizesse all-in no "E viveram felizes para sempre" (porque, convenhamos, ainda tinha muito para viver), ao fim de muito ensaio neste palco decrépito sentia-me em paz com qualquer coelho que o médico pudesse tirar da cartola quando voltasse.

O problema - agora sim - é que, quando ele regressou e passou por aquela porta, entre mim e essa célebre frase tão cheia de sonhos e ambições surgiram duas palavras:

"É cancro".

Deixei de me ouvir respirar.

Deixei de me ouvir respirar e esqueci-me de todas as falas dos meus ensaios, de toda a apaziguada aceitação do meu destino deixado aos ventos.
"É cancro", naquele tom de voz sem réstia de alento, é o copo de vidro que nos escorrega das mãos; que deixamos cair aos nossos pés descalços e se desfaz ali em mil bocados e que te deixa petrificado, imóvel, com receio de assentares um dedo que seja no centímetro quadrado de chão errado. E o zumbido que fica nos ouvidos do vidro a quebrar-se, igual ao som de tudo em ti a quebrar-se também por dentro.

Ninguém te prepara para isto. Engasgas-te a responder, até que desistes de tentar formular uma resposta. Enquanto tu e o teu corpo digerem essa realidade, dás por ti a viajar mentalmente até à tua família, até aos teus amigos, até à tua miúda; a dar-lhes aquele último abraço e aquele discurso de despedida que na verdade não vais dar, porque sabes que quem cá fica são eles e só seria pior se soubessem.

Consegui finalmente engolir aquele bolo, a seco, e não precisei de mais palavras. Arranquei do pulso a porcaria do fio, saltei da cama e fui viver os últimos dias da minha vida, antes de me deitar aqui de vez.

Não deu para tudo, mas consegui um serão em família e dar o último adeus em silêncio a grande parte dos meus. Para terminar, hoje assisti pela última vez a um jogo de vólei da minha equipa, sem eles saberem. E ganhámos...! Ganhámos e ganhámos bem, com um mérito irrepreensível, e só por isso,  mesmo não seja "para sempre", eu vou daqui feliz.

Um abraço amigo.

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