Imagina-te a andar à chuva em dia de tempestade. Imagina.
Imagina que à tua volta há água e nevoeiro. Só. Sentes frio, sentes humidade. Imagina.
Escuta. Ouves a chuva. Já não ouves carros, fugiram da tempestade. Imagina.
Estás só. Há silêncio dentro de ti. E desespero. Falta tranquilidade. Imagina.
Agora pára o tempo. Pára-o e imagina.
Olha em redor. Percebes...?
Vês as gotas de água paradas e o nevoeiro congelado? Aguardam-te.
Aguardam que olhes para eles e depois para ti da mesma forma.
Aguardam que os olhes e depois olhes o mundo da mesma forma.
Aguardam que os observes e depois observes a Vida da mesma forma.
Percebes?
E se eu te disser que imaginei e que a minha tempestade parou e que olhei?
E se te dissesse que daquela solidão de gente assustada me livrei?
E também que logo depois olhei de perto cada gota de água? Cada uma dos milhões?
Se te dissesse que dei um bocado de mim para ver de perto o mais natural da Vida que, por isso, desprezo todos os dias?
Se disser que toquei cada gota de chuva que por mim e por ti passa tão fugazmente que nem há tempo para pensarmos nela, mas que faz parte do mundo onde eu e tu vivemos?
E se, por isto, te dissesse que há mais para além do que queremos ver?
Acreditavas?
Então imagina. E tenta olhar. E fracassa. E sente o frio. E escuta a tempestade que cai. E sente o silêncio dentro de ti. E sente o desespero gritar. E procura tranquilidade. E fracassa uma segunda vez. Imagina. E agora pára o tempo. E volta a imaginar. Deixa-te passear pelo enxame de gotículas paradas e neblina adensada. Toca-os. E sente. Volta a ouvir, a ler se precisares, o que disse e o que deixei escrito. Sente. E acredita.
Há mais, além.
E agora sei. E agora sabes também.
Quiseste perguntar um dia se sabia definir amor. Tentei e tentaste. Ficámos tão longe.
Mas vou arriscar outra vez.
Lembras-te de quando éramos pequenos e nos sentávamos no cume daquela montanha a ver passar os comboios? De quando chovia torrencialmente e esperávamos a mãe e o pai? De quando tremíamos de frio, abraçados, e calados ansiávamos vê-los pisar a plataforma de embarque?
Lembras-te?
Lembras-te, sei que sim. Sinto que sim. Vagamente, por agora. Relembro agora a cara que fazias quando o pai nos mostrava aquelas invenções estranhas. Farás a mesma enquanto lês estas palavras. Recordas vagamente, mas a memória trar-te-á de volta esses velhos tempos, minha irmã. Ainda te interessa encontrar uma definição para amor? Provavelmente não. Dir-me-ias o que pensas agora, que bem sei, que amor se sente, não se define. Mas, de todo o modo, não podia deixar-me levar deste mundo sem te deixar uma resposta. Ou tentativa de uma. E, agora que vejo próxima essa altura, escrevinho estas palavras em letra desajeitada, que sempre tiveste jeito para decifrar, para saber que satisfiz todos os teus pedidos.
Lembra os comboios. Lembra-os. E tens aí a minha resposta.
O amor é como eles.
Quem vê de fora não percebe. Naquele cume não percebíamos. Pareciam todos iguais.
Lembras-te de falarmos disso? Parece que foi ontem…
Mas quem viaja neles sabe que é a coisa mais errada que se pode pensar. E quem pára debaixo da tempestade, à chuva, de tempo parado, como nós, compreende-o.
A gente muda. Quem ocupa o lugar ao lado é diferente. O da frente e o de trás também.
A conversa muda. As crises de que se falam são outras, as do Passado morreram.
O tempo muda. As rugas que se acumulam na minha face e na dos outros lembram-me que não vivo para sempre. Lembram-me que deixo para trás as coisas velhas e que à frente me esperam novas. Poucas, sim, mas novas.
Tudo muda. Comboios iguais? Nunca.
De dentro percebe-se. E quando nos sentámos pela primeira vez num comboio foi isso que me disseste ao ouvido, entusiasmada. Parecia tudo tão pequeno, tão simples…
Olha o comboio e olha o amor. Tocaste as gotas de chuva, tocarás tudo na Vida.
O comboio vem e vai. Vem, passa e vai.
Larga velha gente, velha coisa. Abraça nova gente e nova coisa.
E volta a vir e volta a passar e volta a ir. Nós somos passageiros. Sempre fomos.
A minha literatura sem jeito não há-de mudar. E se não foi nos noventa e dois anos que deixo para trás que mudou, não é nestes dias poucos, em que já respirar me traz dor, que mudará, minha irmã. Tu que soubeste parar a tempestade, a chuva e o nevoeiro, saberás encontrar na minha comparação tola uma luz, como aquela que víamos chegar do túnel escuro, lá em baixo, quando chegava um novo comboio.
Agora que consegui deixar-te uma pista para a tua pergunta de gente pequena, que de resposta concreta pouco tem, tenho um último desejo. Percebi, nos poucos anos que vivi, que os comboios, além de serem como o amor, são como a Vida.
Também é um comboio.
Subimos, pequeninos, numa estação embrulhada num nada sem jeito, que ninguém sabe onde fica. Atravessamos mundos e gentes, lugares diferentes. Viajamos com almas que quando entrámos já ali estavam havia uns tempos.
Almas jovens, almas adultas e almas enrugadas.
Almas que conheciam muito lugar.
Almas de quem nos fizemos conhecidos. E amigos. E namorados. E noivos. E familiares. Entre outros.
Aos poucos, fomos parando noutras estações. Estações de saída. Assistimos à partida dessas almas que nos acompanhavam desde o dia em que no comboio subimos.
O coração, então maduro, era invadido por melancolia, mágoa como a que partilhámos nos dias em que a mãe e o pai tiveram de descer e sair da nossa carruagem. Desde esses dias, juraria que nunca vi duas vezes o mesmo rosto no mesmo assento. As almas que partiram deixaram um vazio que ainda hoje me assombra.
Lês-me há muito, minha querida irmã, para agora chegar ao que quero.
Não oiço de ti há anos. Não sei de ti. Mas tu sabes de mim e procurar-me-ás neste mesmo hospital, dentro de poucos dias. Sim, sinto que o túnel onde o nosso comboio se enfiou está para acabar e que pararemos uma vez mais. E sim, sinto que é a minha vez de deixar a carruagem.
Antes de partir, que mais não te deixo por dizer, quero que sorrias por saber isto. Não podia ter na vida, no meu e teu comboio, melhor parceira do que tu. Se o amor é bonito, que ambos sabemos que é, é muito pouco comparado com o que é ter-te. Ter-te tido, melhor direi, que será este o tempo adequado, quando me leres. Sorri, minha querida. Fizeste da minha carruagem uma carruagem especial. Fizeste da nossa carruagem a melhor que qualquer Homem podia ter. Sorri.
Prometo não pisar a plataforma de embarque.
Prometo agarrar-me, com as poucas forças que sei ter, ao fim do teu comboio.
Seguirei contigo.
Tolo? Muitas vezes na Vida, mas não desta.
Seguirei contigo, sim. Não acreditas?
Olha as simplicidades da Vida com atenção. Olha a carruagem com o coração, os olhos fazem-te cega. Olha-a assim e saber-me-ás (ainda e como desde que nascemos) sentado a teu lado, nesse lugar vazio aos olhos por que te fazes sempre acompanhar.
Olha a chuva. Olha o nevoeiro. Aguardam que os observes e depois observes a Vida da mesma forma, que há mais para além do que vês.
O teu irmão.
Querido Tomás,
ResponderEliminarEstou emocionada com o que li, e orgulhosa também.
Revejo sentimentos, também meus, nas tuas palavras. O que pode haver melhor num texto para quem o lê do que um pouco do reflexo de si mesmo.
Obrigada : )
Beijinhos
Alice
«Aos poucos, fomos parando noutras estações. Estações de saída. Assistimos à partida dessas almas que nos acompanhavam desde o dia em que no comboio subimos.
ResponderEliminarO coração, então maduro, era invadido por melancolia, mágoa como a que partilhámos nos dias em que a mãe e o pai tiveram de descer e sair da nossa carruagem. Desde esses dias, juraria que nunca vi duas vezes o mesmo rosto no mesmo assento. As almas que partiram deixaram um vazio que ainda hoje me assombra.»
(a chorar baba e ranho. sim, sou uma pirosa, mas isto está mesmo bonito e verdadeiro.)