É bom ser-se sozinha.
O que eu não me lembrava é que é ainda melhor ter alguém e ser de alguém.
Há dois anos que eu não tinha ninguém. Dava demasiado valor a ter-me a mim mesma e não estava disposta a abdicar de metade de mim para qualquer pessoa. Longe iam os tempos em que perderia fôlego por apenas uns beijos e uns dias de diversão. Já não tenho a idade, nem tão-pouco a paciência. Mas com ele era diferente.
Havia qualquer coisa nele que mexia comigo. Que me cativava. De alguma forma, as palavras e os silêncios dele agitavam levemente as próprias fundações do meu ser. São precisos dois para dançar o tango e ele sabia dançar comigo. Com as minhas manias, as minhas virtudes e os meus defeitos. Escutava-me quando eu queria que me escutasse, respondia quando devia responder e sabia não falar quando, sem o dizer, eu me queria para mim própria. Escutava-me para me ouvir e não para me responder. E ouvindo, respondia-me em desafio, em profundidade, contra a superficialidade trivial da maioria das conversas de hoje. E ríamos; ríamos muito.
Voltei a sentir o sabor de poder ter e ser de alguém. A respiração no pescoço e o bater de outro coração no meu ouvido. O sorriso nervoso e as borboletas no estômago. Nunca fui de pieguices, mas pensei até para mim que talvez tivesse chocado por acidente com uma metade perdida da minha alma. Éramos diferentes, claro que éramos, mas éramos também muito iguais. E viajávamos muito, mesmo que só conversando.
Fazíamos planos de ir ver o mundo, de avião, de carro, de canoa e a pé. De ver mil e um pores-do-sol. De dançar à chuva. De ir ver as primeiras neves do Inverno, pelo Natal, e de desenhar nela anjos com os nossos corpos, como nos filmes. De desligarmos de toda a gente durante uma semana no campo e de rebolarmos como crianças por toda a extensão de prados verdes. De, a seu tempo, trocarmos alianças e de nos afirmarmos ao mundo, aos nossos e a Deus no altar. De construirmos a nossa casa e depois a nossa família. De termos a nossa própria árvore de natal.
Podia continuar. Mas nós, que viajámos tanto, perdemo-nos algures no caminho. Não sei onde, nem porquê. Num segundo seguíamos juntos e estavas lá, no outro seguiste por uma rua diferente e desapareceste de mim.
Sem explicações, sem rasto e com muitos sonhos meus.
domingo, novembro 27, 2016
segunda-feira, novembro 21, 2016
Maratonas
Eu prefiro maratonas.
Desde que aprendi a andar, desenvolvi depressa o gosto pela corrida. Primeiro por necessidade, para fugir ao caniche que teimava em perseguir-me pelos corredores de casa, e mais tarde para apanhar o autocarro no último minuto a caminho da escola, para aproveitar no limite o tempo que tinha para privar com a minha cama em pleno inverno. A velocidade era a chave, fosse para salvar a pele de uns dentes irritantemente afiados ou de um recado na caderneta da escola.
Com o tempo, a corrida ganhou outra consistência e outro peso na minha vida. Tornei-me num velocista nato: o prazer de ser o primeiro a cruzar a meta, fosse ela qual fosse, enchia-me as medidas. Os 100 metros, os 200 metros, os 400 e as barreiras. O sabor não vivia no trajecto, nos obstáculos ou nas condicionantes à volta; os meus olhos apontavam apenas para a linha final, para o objectivo, e o resto era fumo e nevoeiro que eu escolhia não ver por entre as passadas rápidas. Lançava-me de cabeça, com o sangue fervilhando a todo o vapor, e esticava-me no ar numa questão de segundos para agarrar o que houvesse para lá da meta. E era esse o meu amor pela corrida.
A coisa engraçada da idade é que muda a nossa perspectiva do mundo e das coisas. Começas a valorizar os pequenos detalhes. O bater do coração a cada metro, o comprimento da passada, o controlo da respiração e a gestão do cansaço, procurando a harmonia perfeita entre velocidade e resistência. Quando tomas o gosto pela corrida, queres é correr o máximo de tempo que puderes. Trocas a velocidade pelo fundo. O sprint pela maratona.
A linha final perde expressão e ser o primeiro deixa de ser objectivo. O teu objectivo passa a ser conseguir chegar até ela, até à meta, àquela mais longínqua e mais distante a que a maioria não chega. Triunfar quando os restantes ficam pelo caminho. Trabalhas a resistência em vez da velocidade. A paciência em vez da fúria. E de todas as vezes estabeleces para ti uma meta mais além, pelo desafio para contigo mesmo.
Eu prefiro maratonas.
De que outra forma teria fôlego para correr meio mundo até ti?
Desde que aprendi a andar, desenvolvi depressa o gosto pela corrida. Primeiro por necessidade, para fugir ao caniche que teimava em perseguir-me pelos corredores de casa, e mais tarde para apanhar o autocarro no último minuto a caminho da escola, para aproveitar no limite o tempo que tinha para privar com a minha cama em pleno inverno. A velocidade era a chave, fosse para salvar a pele de uns dentes irritantemente afiados ou de um recado na caderneta da escola.
Com o tempo, a corrida ganhou outra consistência e outro peso na minha vida. Tornei-me num velocista nato: o prazer de ser o primeiro a cruzar a meta, fosse ela qual fosse, enchia-me as medidas. Os 100 metros, os 200 metros, os 400 e as barreiras. O sabor não vivia no trajecto, nos obstáculos ou nas condicionantes à volta; os meus olhos apontavam apenas para a linha final, para o objectivo, e o resto era fumo e nevoeiro que eu escolhia não ver por entre as passadas rápidas. Lançava-me de cabeça, com o sangue fervilhando a todo o vapor, e esticava-me no ar numa questão de segundos para agarrar o que houvesse para lá da meta. E era esse o meu amor pela corrida.
A coisa engraçada da idade é que muda a nossa perspectiva do mundo e das coisas. Começas a valorizar os pequenos detalhes. O bater do coração a cada metro, o comprimento da passada, o controlo da respiração e a gestão do cansaço, procurando a harmonia perfeita entre velocidade e resistência. Quando tomas o gosto pela corrida, queres é correr o máximo de tempo que puderes. Trocas a velocidade pelo fundo. O sprint pela maratona.
A linha final perde expressão e ser o primeiro deixa de ser objectivo. O teu objectivo passa a ser conseguir chegar até ela, até à meta, àquela mais longínqua e mais distante a que a maioria não chega. Triunfar quando os restantes ficam pelo caminho. Trabalhas a resistência em vez da velocidade. A paciência em vez da fúria. E de todas as vezes estabeleces para ti uma meta mais além, pelo desafio para contigo mesmo.
Eu prefiro maratonas.
De que outra forma teria fôlego para correr meio mundo até ti?
sexta-feira, novembro 11, 2016
Não Cai Só Chuva do Céu
O chão e as paredes tremeram pela primeira vez.
Estava frio na cave; a electricidade já tinha ido abaixo e o inverno ríspido instalava-se-nos nos ossos. Sem luz nem radiador, a escuridão era interrompida apenas pela tímida nesga de luz que descia pela brecha de janela junto ao tecto. Apertava contra mim a minha mulher e os meus dois filhos, que tremiam como o chão e as paredes, enquanto nos envolvia no único cobertor que consegui encontrar.
Ninguém falava.
O meu pai costumava dizer-me em miúdo que o medo tem cheiro e que sempre que um Homem tem medo é possível senti-lo no ar. Ouvia-lhe agora a voz sussurrar-mo ao ouvido e prolongando-se na minha cabeça, tão claramente quanto há 30 anos atrás. Se na altura, em tenra idade, lhe tomei o conselho como incentivo a não demonstrar o medo, hoje reconhecia-lhe a razão. Cheirava-se efectivamente no ar. No nosso ar, na cave - na minha mulher, nos meus filhos e, Deus, até em mim -, e no ar lá fora, nas ruas desertas, nos pelotões de homens armados do Führer e nos carros blindados que patrulhavam a cidade a cada meia hora, nos latidos dos cães ao longe, nas caves atulhadas de famílias como a nossa e agora no chão e nas paredes que tremiam.
Além de nos cheirar o medo, eu era capaz de nos ouvir bater os corações, sem ritmo certo e cada vez mais fortes, como se quisessem saltar-nos do peito e esgueirar-se pela janela junto ao tecto para fugirem dali. Mas, embora não pudesse dizer-lhes nada quanto a isso, em especial aos dois miúdos que o negrume da cave já não me permitia ver, eu sabia que para nós era tarde demais.
O chão e as paredes tremeram segunda vez.
As bombas começaram a cair.
Estava frio na cave; a electricidade já tinha ido abaixo e o inverno ríspido instalava-se-nos nos ossos. Sem luz nem radiador, a escuridão era interrompida apenas pela tímida nesga de luz que descia pela brecha de janela junto ao tecto. Apertava contra mim a minha mulher e os meus dois filhos, que tremiam como o chão e as paredes, enquanto nos envolvia no único cobertor que consegui encontrar.
Ninguém falava.
O meu pai costumava dizer-me em miúdo que o medo tem cheiro e que sempre que um Homem tem medo é possível senti-lo no ar. Ouvia-lhe agora a voz sussurrar-mo ao ouvido e prolongando-se na minha cabeça, tão claramente quanto há 30 anos atrás. Se na altura, em tenra idade, lhe tomei o conselho como incentivo a não demonstrar o medo, hoje reconhecia-lhe a razão. Cheirava-se efectivamente no ar. No nosso ar, na cave - na minha mulher, nos meus filhos e, Deus, até em mim -, e no ar lá fora, nas ruas desertas, nos pelotões de homens armados do Führer e nos carros blindados que patrulhavam a cidade a cada meia hora, nos latidos dos cães ao longe, nas caves atulhadas de famílias como a nossa e agora no chão e nas paredes que tremiam.
Além de nos cheirar o medo, eu era capaz de nos ouvir bater os corações, sem ritmo certo e cada vez mais fortes, como se quisessem saltar-nos do peito e esgueirar-se pela janela junto ao tecto para fugirem dali. Mas, embora não pudesse dizer-lhes nada quanto a isso, em especial aos dois miúdos que o negrume da cave já não me permitia ver, eu sabia que para nós era tarde demais.
O chão e as paredes tremeram segunda vez.
As bombas começaram a cair.
terça-feira, novembro 08, 2016
Preto no Branco
Tiveste sorte.
Tiveste sorte de nascer num hospital. Tiveste sorte de ser criado num berço, debaixo de um tecto e rodeado de brinquedos. Tiveste sorte de ter roupa lavada. Tiveste sorte de ter roupa. Tiveste sorte de ter sapatos. Tiveste sorte de não saber o que é o frio. Tiveste sorte de não saber o que é ter os pés massacrados pelo chão que pisas.
Tiveste sorte de ter comida no prato três vezes por dia. Tiveste sorte de ter comida no prato. Tiveste sorte de ter prato. Tiveste a sorte de saber o que é comida. Tiveste sorte de não saber o que é a fome. Tiveste sorte de saber o que é a água e de não saber o que é a sede quando o sol te come a pele aos poucos.
Tiveste sorte de ser visto. Tiveste sorte de ter voz e ser ouvido. Tiveste sorte de ter direito a uma opinião. Tiveste sorte de pertencer, de ser parte. Tiveste sorte de ter um emprego. Tiveste sorte de ter um serviço de saúde. Tiveste sorte de ver crescer saudáveis os teus filhos. Tiveste sorte de ver crescer os teus filhos. Tiveste sorte de poder viver os teus sonhos. Tiveste sorte de poder ver o mundo com todas as cores.
Mas não és capaz de ver que o teu mundo de sorte só vê a duas cores: preto e branco.
Eu sou o preto.
E tu tiveste sorte.
Tiveste sorte de nascer num hospital. Tiveste sorte de ser criado num berço, debaixo de um tecto e rodeado de brinquedos. Tiveste sorte de ter roupa lavada. Tiveste sorte de ter roupa. Tiveste sorte de ter sapatos. Tiveste sorte de não saber o que é o frio. Tiveste sorte de não saber o que é ter os pés massacrados pelo chão que pisas.
Tiveste sorte de ter comida no prato três vezes por dia. Tiveste sorte de ter comida no prato. Tiveste sorte de ter prato. Tiveste a sorte de saber o que é comida. Tiveste sorte de não saber o que é a fome. Tiveste sorte de saber o que é a água e de não saber o que é a sede quando o sol te come a pele aos poucos.
Tiveste sorte de ser visto. Tiveste sorte de ter voz e ser ouvido. Tiveste sorte de ter direito a uma opinião. Tiveste sorte de pertencer, de ser parte. Tiveste sorte de ter um emprego. Tiveste sorte de ter um serviço de saúde. Tiveste sorte de ver crescer saudáveis os teus filhos. Tiveste sorte de ver crescer os teus filhos. Tiveste sorte de poder viver os teus sonhos. Tiveste sorte de poder ver o mundo com todas as cores.
Mas não és capaz de ver que o teu mundo de sorte só vê a duas cores: preto e branco.
Eu sou o preto.
E tu tiveste sorte.