Sou refém na minha própria casa.
Refém dele, de uma ira que não sei de onde vem.
Perdemo-nos um do outro com o tempo. Perdemo-nos na rotina. Na obsessão com o trabalho e na gradual desvalorização de todas as outras coisas fundamentais na nossa vida, desenhada para ser vivida a dois. E somos dois, mas somos um e um, duas pessoas em mundos cada vez mais afastados, muito embora sob um só tecto. Duas marionetas dançando ao som do vento em pontas opostas do mesmo palco.
Fui perdendo espaço, fui perdendo brilho. Aos poucos perdi a voz. Mas ele, para quem a minha voz se tornou zumbido de mosca e dores de cabeça, para além de de mim, perdeu-se dele, como se alguém tivesse cortado as cordas da sua marioneta. Transformou-se numa máquina. Deixou de saber olhar-me, deixou de saber tocar-me e deixou de saber falar-me, salvo para me mandar trazer-lhe mais uma cerveja ou não sair de casa sem a sua autorização, sob ameaça - não, sob promessa - de agressão. E eu deixei de o conhecer, sem no entanto conseguir deixar de o amar, de amar a memória dele, e passei a temê-lo, da ponta dos meus pés à ponta dos meus cabelos. Mas em silêncio, sempre em silêncio, incapaz de fugir. A minha sentença é amá-lo tanto.
É hora de jantar e a raiva dele telefonou-me há pouco. Está a caminho de casa e vai usar-me outra vez para descarregar a doença que o corrói por dentro. Apressei-me a esconder-me num armário da cozinha, por debaixo do lava-loiças, para adiar o inevitável. E agora espero.
Oiço a porta de casa escancarar-se e oiço-o gritar o meu nome três vezes. Oiço-lhe os passos pesados, provavelmente bêbados, cambaleando pelo corredor fora. Oiço as portas serem abertas e fechadas com um estrondo à medida que passa. E reconhecendo os cantos à casa sei que já me procurou na sala, no quarto, no quarto de visitas, na casa-de-banho e na despensa. Oiço-o cada vez mais próximo e o meu corpo vai antecipando já a dor das pancadas que se avizinham. O meu coração bate a mil, tão forte que receio que consiga ouvir-me aqui dentro.
A porta da cozinha abre-se com aquilo que me parece ser um pontapé. Abre o primeiro armário e fecha-o com uma brutalidade tal que oiço qualquer coisa a partir-se. Pressinto que há qualquer coisa de errado. Parece-me mais violento do que o costume. Então reconheço o som da faca de cozinha a deslizar para fora do suporte e ele torna a berrar. "ONDE ESTÁS, MINHA CABRA?!"
Engulo em seco. Não sei o que vai acontecer e nunca senti tanto pânico na vida. Estou prestes a vomitar.
Há cinco armários na cozinha onde podia ter-me escondido e ele já rebentou com quatro.
O meu é o próximo.
sexta-feira, julho 29, 2016
quinta-feira, julho 14, 2016
O Homem no Escritório
Deixei por resignação que as circunstâncias da vida me encurralassem e se empilhassem à minha volta, como pedras erguendo um poço. E era no fundo desse poço que me encontrava nos últimos tempos. Cansada de lutar, encostei-me à parede rugosa e deixei-me deslizar até ficar sentada a um canto, sobre dois dedos de água fria, ao som do meu próprio eco.
O meu corpo navegava em piloto-automático. Da cama para a cozinha - para dar o pequeno-almoço aos miúdos -, de casa para a escola deles, da escola para o escritório, do escritório para a escola, da escola para o supermercado, do supermercado para casa, da garagem para a cozinha para lavar a roupa e preparar o jantar, da cozinha para a mesa e da mesa para a secretária para fazer contas às facturas, à saúde e à vida. As últimas quatro horas do dia passava-as algures entre o sofá, com a televisão a cantar para ninguém, e a cama, grande demais para uma pessoa só. Uma parte de mim assistia em primeira fila a toda essa rotina que tocava em repeat, a outra consumia as últimas forças de mim para se espremer contra o canto mais sombrio do meu poço imaginário.
Tanto assim que, naquele dia em que o céu cinzento resolveu desfazer-se numa chuvada torrencial e tornar-me o dia mais negro, não reconheci o rosto que, quando parti o salto e me espalhei ao comprido no open space do escritório, me estendeu um sorriso e uma mão amiga para me levantar. Sabia em mim que já o teria visto por lá, ou noutro lado qualquer, mas nunca fiz por saber o seu nome, de onde vinha ou o que fazia. E no entanto ali estava ele, quando tudo o resto se limitava a olhar, com escárnio estampado no rosto.
O meu piloto-automático entrou em curto-circuito. A ternura do seu sorriso sabia ao mesmo a que sabe um cobertor pesado numa noite de inverno, ou quiçá roupas quentes, secas, num dia de chuva. Por uns segundos, quando deixei que me tomasse a mão, as duas metades de mim - a do escritório e a do poço - uniram-se numa sinfonia silenciosa. Senti estremecer as pedras do meu poço e sobre a sua sombra vi cair um feixe de luz.
No momento seguinte, estava de pé e depois sentada, de volta aos meus papéis e dossiers, de volta ao meu piloto-automático, e ele de volta ao gabinete ao fundo do corredor. Procurando uma nesga de controlo sobre o meu corpo, desviei para ele o olhar. Via-o cirandar através da porta, de vidro, falando para o ar e escutando e acenando de seguida, como se conversasse com um amigo que em boa verdade não existia. E ria-se de novo. Tive a certeza de que era a única pessoa naquele open space a assistir àquela loucura.
E então, quando deixou de falar, como se pudesse sentir-me a observá-lo, levantou a cabeça e olhou-me fixamente. Sustive a respiração, invadida, e recolhi-me em mim. Sorriu-me uma última vez, o calor terno atravessando o corredor que nos separava, e então dirigiu-se à janela mais próxima, girou lentamente a maçaneta, trepou e pulou para o vazio.
Retesei-me subitamente, pregada à cadeira. Foi como se me passasse um comboio por cima. Incapaz de me mover, engoli em seco e senti-me a ser de novo arrastada para o fundo do meu poço, o desgosto a apoderar-se de mim e o alento a fugir-me algures entre duas respirações consecutivas. Resignei-me de novo: havia sempre carros e gente a passar na rua, lá em baixo; de ouvido atento, esperei no conforto do meu abismo pelo estrondo do seu corpo pesado sobre um carro, pelo estilhaço de vidros vaporizando-se e pelos gritos de pânico esganiçados que se seguiriam.
Esperei um segundo, depois outro. Depois outro e...
Nada. Apenas o silêncio do escritório e um leve travo a chuva e buzinas lá fora, que me chegava através daquela janela aberta.
Confusa, e ciente de que era a única a aperceber-se de todo aquele cenário caricato, atirei com a cadeira para trás, corri descalça até à janela e debrucei-me sobre o parapeito, a chuva e as luzes e as buzinas a beijarem-me docemente a cara.
Olhei a toda a volta.
Mas não havia sinal d'Ele.
O meu corpo navegava em piloto-automático. Da cama para a cozinha - para dar o pequeno-almoço aos miúdos -, de casa para a escola deles, da escola para o escritório, do escritório para a escola, da escola para o supermercado, do supermercado para casa, da garagem para a cozinha para lavar a roupa e preparar o jantar, da cozinha para a mesa e da mesa para a secretária para fazer contas às facturas, à saúde e à vida. As últimas quatro horas do dia passava-as algures entre o sofá, com a televisão a cantar para ninguém, e a cama, grande demais para uma pessoa só. Uma parte de mim assistia em primeira fila a toda essa rotina que tocava em repeat, a outra consumia as últimas forças de mim para se espremer contra o canto mais sombrio do meu poço imaginário.
Tanto assim que, naquele dia em que o céu cinzento resolveu desfazer-se numa chuvada torrencial e tornar-me o dia mais negro, não reconheci o rosto que, quando parti o salto e me espalhei ao comprido no open space do escritório, me estendeu um sorriso e uma mão amiga para me levantar. Sabia em mim que já o teria visto por lá, ou noutro lado qualquer, mas nunca fiz por saber o seu nome, de onde vinha ou o que fazia. E no entanto ali estava ele, quando tudo o resto se limitava a olhar, com escárnio estampado no rosto.
O meu piloto-automático entrou em curto-circuito. A ternura do seu sorriso sabia ao mesmo a que sabe um cobertor pesado numa noite de inverno, ou quiçá roupas quentes, secas, num dia de chuva. Por uns segundos, quando deixei que me tomasse a mão, as duas metades de mim - a do escritório e a do poço - uniram-se numa sinfonia silenciosa. Senti estremecer as pedras do meu poço e sobre a sua sombra vi cair um feixe de luz.
No momento seguinte, estava de pé e depois sentada, de volta aos meus papéis e dossiers, de volta ao meu piloto-automático, e ele de volta ao gabinete ao fundo do corredor. Procurando uma nesga de controlo sobre o meu corpo, desviei para ele o olhar. Via-o cirandar através da porta, de vidro, falando para o ar e escutando e acenando de seguida, como se conversasse com um amigo que em boa verdade não existia. E ria-se de novo. Tive a certeza de que era a única pessoa naquele open space a assistir àquela loucura.
E então, quando deixou de falar, como se pudesse sentir-me a observá-lo, levantou a cabeça e olhou-me fixamente. Sustive a respiração, invadida, e recolhi-me em mim. Sorriu-me uma última vez, o calor terno atravessando o corredor que nos separava, e então dirigiu-se à janela mais próxima, girou lentamente a maçaneta, trepou e pulou para o vazio.
Retesei-me subitamente, pregada à cadeira. Foi como se me passasse um comboio por cima. Incapaz de me mover, engoli em seco e senti-me a ser de novo arrastada para o fundo do meu poço, o desgosto a apoderar-se de mim e o alento a fugir-me algures entre duas respirações consecutivas. Resignei-me de novo: havia sempre carros e gente a passar na rua, lá em baixo; de ouvido atento, esperei no conforto do meu abismo pelo estrondo do seu corpo pesado sobre um carro, pelo estilhaço de vidros vaporizando-se e pelos gritos de pânico esganiçados que se seguiriam.
Esperei um segundo, depois outro. Depois outro e...
Nada. Apenas o silêncio do escritório e um leve travo a chuva e buzinas lá fora, que me chegava através daquela janela aberta.
Confusa, e ciente de que era a única a aperceber-se de todo aquele cenário caricato, atirei com a cadeira para trás, corri descalça até à janela e debrucei-me sobre o parapeito, a chuva e as luzes e as buzinas a beijarem-me docemente a cara.
Olhei a toda a volta.
Mas não havia sinal d'Ele.
quinta-feira, julho 07, 2016
Tango Mortal
Ele era apenas um miúdo.
Além de cheiro e memória, a morte tem cor. É vermelha e é negra. E no entanto não tem nada de colorida. Deixa-me as mãos em sangue, a alma em brasa e a mente em ferida. No cru jogo da guerra não há espaço para ser-se ético. Pode haver na morte cor, mas não há nada de poético.
Ele era apenas um miúdo. Mas vendo-me desarmado não hesitei em lançar as mãos ao seu pescoço e em apertá-lo entre os meus dedos com todas as energias que tinha em mim.
Dançávamos um tango a dois. Eu apertava-lhe o pescoço e a vida nele para que ele não pudesse apertar o gatilho que me tiraria a minha. O instinto de sobrevivência percorria-me de alto a baixo, demorava-se no meu coração durante três rápidas batidas e depois dispersava para os meus braços. Depois para os meus dedos. E por fim para o pescoço dele.
Mantivemo-nos nesse ritmo incansável, cedendo e conquistando espaço de dança em alternância, até que a música parou. Sob o peso do meu corpo e das minhas mãos feridas, o pescoço dele finalmente sucumbiu, quebrando com a mesma fragilidade com que se partem galhos secos. Ouvi-lhe um estalido surdo e o ar a fugir-lhe de vez dos pulmões. Larguei-lhe por fim a garganta, os meus dedos roxos e hirtos da força, e rebolei para longe do corpo dele, rolando sobre as costas.
Podia ser apenas um miúdo, mas se em vez de lhe apertar o pescoço eu o tivesse deixado premir aquele gatilho, hoje estaríamos não a caminho do meu casamento, mas do meu funeral.