Voltei à casa onde cresci.
Há muito que já ninguém habitava aquele prédio velho. O elevador parara para sempre entre o segundo e o terceiro andar, suspenso como um corpo enforcado sobre o fosso, e os degraus empoeirados que se enrolavam em torno dele rangiam e estalavam ao som da minha passada cautelosa. O pó erguia-se do chão em espirais e encaracolava-se no feixe de luz da minha lanterna, antes de desaparecer para a escuridão como um peixe escondendo-se entre as rochas no fundo do oceano.
Cheguei ao quinto andar.
Levantei a lanterna e detive-me à porta, hesitante, vasculhando nas profundezas da minha mente todas as memórias que ela encerrava. Depois, alcancei as chaves no fundo do bolso e lancei-as à fechadura, como fizera tantas outras vezes naqueles dias. Mas agora tudo era diferente... até o próprio gesto de abrir aquela porta era já estranho ao meu corpo.
A porta balançou para trás num rangido desconcertante, a que não estava habituado, com as chaves tinindo nervosamente na fechadura. Convidava-me a entrar na nova extensão de negrume.
Inspirei duas e três vezes antes de avançar a medo. Não haveria nada a temer; nada senão eu próprio, nada senão o medo dos meus medos, os medos que ali tivera, e da ausência de tudo o que da minha vida um dia parte fizera. E contudo, esse medo existia e eu sentia-o bem presente, pulsando-me no peito e na garganta.
Não sabia como esperava encontrar a casa. Imaginava teias de aranha a cada canto, os quadros tortos nas paredes, por um fio, desbotados e sem vida, os candeeiros caídos, os tapetes torcidos... Mas tudo estava no seu lugar, tal como os meus pais o haviam deixado. Havia apenas pó. Pó, silêncio e saudade.
Já não sentia aquele lugar como casa. Tinha até dificuldade em dizê-lo familiar. Mas, sem que o pudesse evitar, aquelas paredes pareciam falar-me à medida que lhes apontava a minha lanterna.
Murmuravam-me imagens dos meus pais rindo e dançando em dias felizes, do meu pai bebendo um copo no seu canto nos dias mais pesados, dos meus irmãos e dos meus primos gatinhando atabalhoadamente nos seus pijamas de corpo inteiro, tropeçando desajeitadamente aqui e acolá, dos meus avós e tios reunidos na Consoada, do alvoroço na troca de prendas de Natal, da lareira crepitando lá ao fundo, dos filmes e jogos de cartas em família...
Tudo isso vive ali, naquela penumbra solitária.
Fora dela, a realidade é outra bem diferente, porque nenhuma daquelas pessoas está já entre nós. É irónico... Tento lembrar-me por que motivo foi que deixámos de nos falar, por que nos zangámos, e não consigo.
Por estupidez minha é tarde demais, mas dava tudo para voltar todos os dias atrás no tempo e refazer o que fizemos de errado. Voltar todos os dias a este prédio e a esta sala só para vos ver e para vos ouvir novamente. Para conhecer crescidos os irmãos que apenas conheci bebés. Para vos abraçar uma última vez. Para vos pedir perdão. Para poder despedir-me pessoalmente de cada um de vocês no vosso último dia.
Se há um milagre de Natal, que seja tudo isto não passar de um pesadelo e amanhã acordarmos de novo aqui, juntos, com uma segunda oportunidade aguardando debaixo do pinheiro. Nesta vida ou na próxima.
quarta-feira, dezembro 23, 2015
domingo, dezembro 13, 2015
O Teu Piano
A chuva e o frio baloiçam-se lá fora de mão dada, novamente. Agitam e regelam os pinheiros e esbarram-se nas nossas janelas, zumbindo. Esbarram-se, em particular, no janelão junto ao teu piano, que desde que te foste se mantém de persiana aberta - escancarada, antes - como era teu apanágio, debruçando-se a vista sobre o vale e sobre o bosque.
O ar tornou-se vazio sem o som do teu piano. Triste, entregue e rendido ao som solene e repetido da chuva pingando e escorrendo pelos vidros à minha volta. Não me importava que os dias que me restam de vida fossem passados sentado no sofá diante da nossa lareira, escutando a tua melodia harmoniosa. Oh, como gostava de te ouvir e de te ver tocar: os teus dedos saltando graciosamente pelas teclas, entre tons e meios tons, acordes e arpeggios; um ténue sorriso doce nos teus lábios engelhados e o efeito do pedal pisado prolongando-se pelo ar...
Hoje não há música em mim. O meu coração é uma pauta de pausas e silêncios, e as notas, se as houvesse, seriam bemóis e graves, melancólicas e descompassadas. E depois mais pausas, mais silêncios. Eras todos os meus tons cinzentos, as minhas dúvidas, as minhas surpresas e as minhas espontaneidades. Sem ti tornei a ser eu, um singelo homem mundano, apenas a preto e branco, como as teclas do teu piano.
O ar tornou-se vazio sem o som do teu piano. Triste, entregue e rendido ao som solene e repetido da chuva pingando e escorrendo pelos vidros à minha volta. Não me importava que os dias que me restam de vida fossem passados sentado no sofá diante da nossa lareira, escutando a tua melodia harmoniosa. Oh, como gostava de te ouvir e de te ver tocar: os teus dedos saltando graciosamente pelas teclas, entre tons e meios tons, acordes e arpeggios; um ténue sorriso doce nos teus lábios engelhados e o efeito do pedal pisado prolongando-se pelo ar...
Hoje não há música em mim. O meu coração é uma pauta de pausas e silêncios, e as notas, se as houvesse, seriam bemóis e graves, melancólicas e descompassadas. E depois mais pausas, mais silêncios. Eras todos os meus tons cinzentos, as minhas dúvidas, as minhas surpresas e as minhas espontaneidades. Sem ti tornei a ser eu, um singelo homem mundano, apenas a preto e branco, como as teclas do teu piano.