Prossegue lá fora o dilúvio.
E eu prossigo cá dentro sem ti. O ruído da tua ausência e do teu silêncio inquieta-me. Mal oiço a trovoada que ruge lá ao longe. A falta da tua arrumação desarruma-me. Desarruma-me o pensamento. As ideias e os sentimentos. Remexe e revira tudo o que ainda respira aqui dentro.
Não consigo deixar de achar incrível a colecção de copos que vou deixando espalhada pela casa, uns vazios, outros meio vazios... E que mais incrível ainda era a paciência com que endireitavas estes meus defeitos sem deixar que eu desse conta deles.
Hoje, cada copo esquecido com que me deparo é um novo vislumbre de ti. Cada copo, cada cadeira da mesa, cada sofá da sala, cada lugar do carro, cada casa, cada quarto. Até o colchão da cama, como eu, ganhou a tua forma. Moldámo-nos a ti. Estás em todo o lado. Sim, estás. Vejo-te em todo o lado. É quase possível cheirar-te em todo o lado. Mas feitas as contas, não estás mais em lado nenhum. Não aqui, pelo menos. Mesmo depois da Vida continuas a bagunçar-me.
Os miúdos estão bem. Acho que finalmente consegui explicar-lhes o que é um Anjo e todas as noites antes de dormir eles procuram-te no Céu.
segunda-feira, outubro 26, 2015
domingo, outubro 18, 2015
Chocolate Quente
Lá fora chovia. Chovia sempre.
Lá fora chovia, ininterruptamente. No jardim, no alpendre, no telhado e contra as janelas. O vendaval sacudia as portadas e zumbia pelas frestas das janelas. "Devíamos ter optado por um barco! Ou um bunker...!", dizias-me sempre, em dias destes.
Lá fora chovia e a electricidade caiu. Caía sempre. Ganhei com o passar dos anos o teu feliz hábito de prender a lanterna à cintura e segui à risca o teu ritual de acender uma vela em cada divisão da casa. Sigo sempre. Sigo sempre e de algum modo faz-me parecer que ainda estás aqui.
Lá fora chovia como na noite em que nos conhecemos, no prado lamacento, tu com o cabelo colado à cara e o vestido colado ao corpo, e antes que caísse a noite fui à cave buscar dois toros de madeira. Já não sobram muitos da nossa última colheita.
Lá fora chovia e antes que o frio voltasse atirei os toros para dentro da lareira, com um par de pinhas, e ateei o lume. Hoje tive de o trabalhar um pouco mais para que se aguentasse firme. Parece que nestes dias até o fogo se recolhe e só ao fim de meia hora de trabalho tínhamos lareira digna do nome.
Lá fora chovia. Lá fora chovia e cá dentro já as velas iluminavam a casa, trémulas, e a lareira aquecia o ar. O crepitar das chamas sobrepunha-se lentamente ao cair da chuva. À luz da lareira, consegui pela primeira vez olhar para a fotografia do nosso casamento sem que me viesse aos olhos uma lágrima.
Lá fora chovia e no lugar da lágrima surgiu um sorriso leve, um pouco amargurado ainda, mas um sorriso, contagiado pela tua felicidade irradiante. "Estás no meu lugar.", adoravas reclamar. Pois bem, hoje sentei-me no teu lugar e hoje não vou sair, sinto-te mais perto aqui e isso reconforta-me a alma.
Lá fora chovia e tenho a panela ao lume. Hoje trato eu dos nossos chocolates quentes.
Lá fora chovia, ininterruptamente. No jardim, no alpendre, no telhado e contra as janelas. O vendaval sacudia as portadas e zumbia pelas frestas das janelas. "Devíamos ter optado por um barco! Ou um bunker...!", dizias-me sempre, em dias destes.
Lá fora chovia e a electricidade caiu. Caía sempre. Ganhei com o passar dos anos o teu feliz hábito de prender a lanterna à cintura e segui à risca o teu ritual de acender uma vela em cada divisão da casa. Sigo sempre. Sigo sempre e de algum modo faz-me parecer que ainda estás aqui.
Lá fora chovia como na noite em que nos conhecemos, no prado lamacento, tu com o cabelo colado à cara e o vestido colado ao corpo, e antes que caísse a noite fui à cave buscar dois toros de madeira. Já não sobram muitos da nossa última colheita.
Lá fora chovia e antes que o frio voltasse atirei os toros para dentro da lareira, com um par de pinhas, e ateei o lume. Hoje tive de o trabalhar um pouco mais para que se aguentasse firme. Parece que nestes dias até o fogo se recolhe e só ao fim de meia hora de trabalho tínhamos lareira digna do nome.
Lá fora chovia. Lá fora chovia e cá dentro já as velas iluminavam a casa, trémulas, e a lareira aquecia o ar. O crepitar das chamas sobrepunha-se lentamente ao cair da chuva. À luz da lareira, consegui pela primeira vez olhar para a fotografia do nosso casamento sem que me viesse aos olhos uma lágrima.
Lá fora chovia e no lugar da lágrima surgiu um sorriso leve, um pouco amargurado ainda, mas um sorriso, contagiado pela tua felicidade irradiante. "Estás no meu lugar.", adoravas reclamar. Pois bem, hoje sentei-me no teu lugar e hoje não vou sair, sinto-te mais perto aqui e isso reconforta-me a alma.
Lá fora chovia e tenho a panela ao lume. Hoje trato eu dos nossos chocolates quentes.
quinta-feira, outubro 15, 2015
Palco de Guerra
Descobri que não sei o que é o silêncio. Que o meu silêncio é o mais ruidoso deles todos e que me ensurdece como nenhum outro.
Disseste-te um dia curiosa para conseguir ver o que se esconde para lá dos meus olhos. A loucura que dança para lá daqueles dois pequenos espelhos que te olhavam. Dizias imaginar que a minha mente era um palco de guerra, debaixo de fogo cruzado e cercada de explosões aqui e ali. Foram essas as palavras que escolheste. E não deixa de ser engraçado - e intemporal - que naquela tua pequena inocência tivesses tamanha razão. Afinal de contas, sempre tiveste o hábito de pintar a tua opinião com um jeito muito próprio, arrojado, mas muito acertado.
É um palco de guerra. É um fogo cruzado a cada instante, sem uma trincheira onde te possas abrigar para recuperar o fôlego antes de uma nova investida. Sem uma parede entre ti e o inimigo, uma sombra que te resguarde do sol ardente ou um tecto que te ampare a chuva.
É a tempestade de areia que varre o deserto. É um tic-tac miudinho que te persegue, um sussurro que te encontra por mais que fujas e por mais que te escondas. É a voz que te falha quando queres fazer soar o alerta ao camarada que luta ao teu lado, é a soma de todos os receios e anseios quando o vês tombar diante dos teus olhos. É a angústia e a frustração de te aperceberes que não pudeste fazer nada para mudar o destino que teve. É o medo que te assola quando caiu o teu último homem e és o próximo a estar na cara do inimigo. O sufoco que te espreme os pulmões e te suga o ar quando escutas os seus passos arrastando-se até ti. É o rasgo de coragem que se incendeia em ti para te conduzir numa última carga. É o estilhaço de dor de seres atingido dez vezes no peito e duas na cara. É o frio que te trepa pelas pernas à medida que o sangue escorre pelo teu corpo. É a impotência de te veres vencido e vexado pelo teu inimigo, gigante diante de ti, enquanto cais de joelhos. É o desamparo que se apodera de ti quando os teus últimos suspiros te roubam as forças. É o silêncio mortal que paira no ar, numa dança macabra, depois de caíres de bruços, sem vida.
É tudo isso e o teu inimigo seres Tu própria.